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Terceiro Setor: poder que emana da sociedade em tempos de pandemia

A atuação de projetos sociais não governamentais durante o contágio da COVID-19

Reportagem por Erick Avezani Monteiro

A carência de serviços de assistências básicas à população, resultante da desigualdade social que assola o Brasil, chegou ao ponto de, segundo o IBGE (2020), debutar o Estado brasileiro em nono lugar na categoria de “países mais desiguais do mundo”. E ainda como dito por especialistas, o cenário tende a piorar após a pandemia da COVID-19.

De acordo com análises realizadas em 2020 por nações como Austrália e Inglaterra, juntamente ao Instituto Mundial das Nações Unidas para a Pesquisa Econômica do Desenvolvimento (UNU-WIDER), os rastros que o vírus poderá deixar no Brasil são avassaladores, colocando até 14,4 milhões de pessoas na linha da pobreza.

Porém, apesar desse grande problema, há guerreiros no combate a tais dificuldades, que continuam trabalhando intensamente durante o enfrentamento às consequências sociais da doença que tem se espalhado mundialmente, chamados de o Terceiro Setor, titulação constitucional para denominar projetos sociais sem fins lucrativos que prestam apoio à sociedade e afins.

AINDA HÁ ESPERANÇA

Dados levantados pelo IGBE em 2020 apontam que, antes da pandemia, o trabalho voluntário a partir dos 14 anos no Brasil não estava mais em tendência. Ainda segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, de 200 milhões de habitantes no país, apenas 7 milhões de pessoas desenvolviam alguma ação voluntária.

Para o Projeto Esperança Bauru, a COVID-19 escancarou uma realidade muito mais cruel, que aguçou a desigualdade social e deixou a miséria mais visível, porém, apesar desse cenário, o grupo salienta manter uma perspectiva otimista com o mundo devido ao despertar do espírito solidário. “A sociedade está se envolvendo mais com as necessidades alheias, e a pandemia nos fez repensar as prioridades e o valor que sempre demos as coisas”, afirma a iniciativa bauruense de ações sociais.

O Projeto, nascido de uma iniciativa entre parentes que tem por objetivo a entrega mensal de cestas básicas às famílias registradas em seu sistema, percebeu um aumento da população necessitada e conta que no início da pandemia, em março de 2020, 27 casas estavam sendo ajudadas pela iniciativa, mas que esse número cresceu com a propagação do vírus Sars-Cov-2. “Tivemos um aumento de 10 famílias nos primeiros meses. Esse número não é maior porque infelizmente não podemos cadastrar mais”, relata o grupo de voluntários.

Em diversas postagens no Facebook, a equipe esbanja orgulho e alegria por fazer o bem e também agradece a ajuda dos colaboradores por manterem a causa ativa.

O Projeto Esperança Bauru destaca que a sensação de troca de olhares com o próximo é a “melhor possível” e que percebem, daqueles que recebem a assistência, não só a gratidão de cada um, mas o principal, que é a espera na entrega do auxílio. “Sabemos que as famílias aguardam o dia da entrega das cestas básicas, pois contam com ela para alimentar a família por alguns dias. Não podemos falhar”, finaliza o Projeto.

AMAR É CUIDAR, MAS TAMBÉM ATO POLÍTICO

Está no nome: “Conexão Solidária” é um dos objetivos da ONG Pachamama, desenvolvida em Bauru, que resume parte das iniciativas que compõem o Terceiro Setor.

A Pachamama — Conexão Solidária estende a mão para mulheres, mães e famílias que estão em situação de vulnerabilidade durante a disseminação da COVID-19. A primeira ação feita pelo projeto foi intitulada como “kit-cuidar”, que consistiu na distribuição de sacos contendo sabonetes, cremes dentais, absorventes, embalagem de álcool em gel e máscaras.

Criada no começo de 2020 como uma ação do NUPE (Núcleo Negro para Pesquisa e Extensão Universitária) da UNESP, a Pachamama reforça que seu papel é muito mais do que apenas entregar produtos, é serem “anjas” que aparecem nos momentos mais difíceis, forma como as beneficiadas pelo programa descrevem as voluntárias dado tamanho o cuidado que recebem quando vivenciam a fome, a falta de remédios e até mesmo casos de violência. A Conexão Solidária caracteriza que suas ações partem da “escuta do território” e também que o projeto se divide em cinco setores, sendo uma delas a “Rede Harmonia” que, com afeto, faz o acolhimento das mulheres.

Tratando sobre a deficiência de ajuda dos governos aos necessitados, na primeira semana de abril de 2021 foi elaborado um projeto de lei, criado pelo prefeito curitibano Rafael-Greca (DEM), que tinha por objetivo inferir multa de até R$ 550 para aqueles que partilhassem comida aos sem-teto. Depois de pressionado por instituições de caridade que ressaltaram que os ajudados seriam ainda mais esquecidos pelas autoridades públicas se não fosse o apoio das ONGs, Rafael acabou desistindo da proposta original encaminhada à Câmara Municipal de Curitiba (CMC).

A Pachamama rebate tal acontecimento enfatizando que a falta de operação do Estado como um auxílio oficial e primordial contra a desigualdade social é um problema a ser analisado, uma vez que as organizações não governamentais acabam tomando um cargo de protagonismo que seria do poder público e isso abre portas para que haja um desleixo por conta dos políticos responsáveis por assessorar os indivíduos sem renda básica.

Há casos em que a Conexão Solidária alega ter investido em remédios para crianças vulneráveis, já que os medicamentos não se encontravam disponíveis na Unidade de Pronto-Atendimento. Portanto, a Pachamama reforça dizendo que o trabalho realizado por suas iniciativas é essencial “porque ajuda as mulheres que estão numa situação bastante vulnerável, que não tiveram o auxílio emergencial ou, se tiveram por um tempo, agora não tem. Elas perderam seus empregos, não tem trabalho e isso é muito grave. […] Nós pensamos que a política pública do município deveria estar cuidando efetivamente dessas famílias de uma forma muito mais qualitativa”.

SOLIDARIEDADE QUE TRANSCENDE

No mês de fevereiro de 2020, os participantes do Projeto Amigos da Noite, que quinzenalmente no período noturno se reúnem e distribuem doações de roupas e refeições, realizaram uma experiência única. Com direito a comes e bebes, os voluntários da ONG cantaram felicitações a uma amizade de longa data feita nas ruas bauruenses, construída enquanto realizavam ações comunitárias na cidade.

Os registros da celebração foram publicados no Instagram dos Amigos da Noite junto a uma legenda detalhando que o aniversariante, que era professor de português antes de se encontrar em situação de rua, havia avisado que faria mais um ano de vida, então, o Projeto se esforçou para que ele tivesse um dia especial. […] Na penúltima ação ele disse que hoje 06/02 seria seu aniversário, e não deixamos a data passar em branco. A noite foi especial, nossos voluntários se juntaram pra levar salgadinhos, bolo, refrigerante e brigadeiro. Ele pediu para colocarmos as músicas que te traziam recordações da família, agradeceu muito e disse que estava com seus verdadeiros amigos. Disse que hoje ia dormir feliz, e com certeza todo mundo eu estava lá também vai”, detalha a descrição da postagem, que contém vídeos e fotos dos momentos de descontração.

A carência das pessoas em posição de vulnerabilidade social é mais profunda do que simplesmente a falta de dinheiro para a compra de mercadorias caracterizadas como de necessidades básicas, o sentimento de abandono também é algo presente em suas vidas e precisa ser combatido, e essa é a prioridade para os Amigos, que refletem sobre suas ações e comentam que “a doação vai além de uma refeição ou roupa, a presença e ouvir esse ser humano vulnerável é o que faz a diferença para eles”.

Segundo a Doutora e Professora Flávia Arielo, graduada em História pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), a importância de ONGs e projetos sociais se dá pelo motivo de que, para ela, “conseguem tentar ‘tapar’ um buraco e a própria comunidade acaba reagindo aos seus problemas”.

Na visão de Flávia, as interações entre os voluntários e os necessitados durante os momentos de ajuda resultam em uma troca de experiências. A docente e especialista na área de humanas completa concluindo que não há dúvidas de que participar de projetos voluntários estreita as relações sociais no seio da comunidade.